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Dezembro de 2020. Aos poucos, tento retomar a rotina de exames depois do longo tempo de isolamento social. Ultrassonografia da mama, abdome total e  transvaginal, esse último me causa um certo arrepio. É incômodo, assim como a maioria dos exames médicos para mulheres. Mas é um desconforto que toda mulher deve passar, então a gente engole a seco e encara, porque é o preço que se paga pra ter a saúde em dia. 

 

Outro dia, também depois de muito tempo, fui a uma ortopedista, porque estava cheia de dores no corpo. Não era pra menos. Já havia alguns anos que eu não passava num orto, coisa que, para quem tem a deficiência que eu tenho, é um crime. 

 

As sequelas da paralisia cerebral me obrigaram a passar praticamente toda a minha infância e adolescência em neuros, ortopedistas, fisioterapeutas e psicólogos. Aquela rotina pesada de compromissos médicos que toda pessoa com deficiência conhece bem, de modo que eu não tive uma infância muito tranquila.

Mas, à medida que fui crescendo e caminhando com minhas próprias pernas, eu quis fazer o que toda pessoa “normal” faria. Estudar, me formar na universidade, arranjar um emprego etc. Então, preciso confessar que deixei a fisioterapia um pouco de lado e me voltei mais para o lado profissional, não sem um peso enorme na consciência. 

Bem, na sala da ortopedista, eu me queixei de dores por todo o corpo. Nas mãos, devido ao longo tempo que passo escrevendo no computador, na coluna, — essa eu acho que já está perdida — nos quadris, afetados pela rotação irregular e nos joelhos, que,quase sempre, absorvem os impactos das minhas quedas. 

O custo dos exames, não sei, mas o convênio médico, só eu sei como é duro pagar — quase R$ 1000 por mês e daqui a pouco tem  reajuste de novo. Pra ser bem honesta, toda vez que chega o dia de pagar a mensalidade, eu me pergunto se vale a pena. Aí, respondo pra mim mesma: prefere passar no SUS e pegar fila de espera de 1 ano? Acho que não…ainda mais em ano de pandemia, então, sigo pagando religiosamente  todo mês, pois apesar de não ser o melhor convênio médico do mundo, é o que eu posso pagar. 

 

A ortopedista solicitou, então, uma bateria de exames, incluindo uma radiografia panorâmica da coluna. Aí começa a história: pra minha surpresa, o convênio não tinha um prestador que fizesse esse exame na minha região. 

E depois de três chamados no SAC; depois de mandar todos os documentos solicitados, depois de muito argumentar que eu não podia ir para muito longe porque tinha mobilidade reduzida, depois de quase surtar… adivinhem? O convênio agendou meu exame por conta própria e me mandou para o outro lado da cidade porque não tinha outro prestador que realizasse esse exame em todo o Estado de São Paulo: “Vem gente do estado inteiro pra cá, somos a única clínica credenciada que faz esse exame”, me disse a representante da clínica, toda orgulhosa. Só faltou dar risada na minha cara. 

 

Então, não tive muita escolha, ou eu aceitava aquilo ou continuava com as minhas dores.

Percebam que, mesmo tendo feito o exame, o fato é que minhas “necessidades especiais”, assim como as pessoas gostam tanto de dizer, foram ignoradas pela Notre Dame Intermédica (a operadora de saúde). Mas os boletos estão todos pagos em dia, e eles não esquecem de cobrar.

Mas eu comecei falando de exames ginecológicos, e este outro caso mostra como os estabelecimentos de saúde e seus profissionais não estão preparados para atender às pessoas com deficiência, em especial as mulheres com deficiência. 

 

Em 2019, eu participei dos encontros presenciais do projeto Vozes Femininas. Um desses encontros falava de saúde da mulher, direitos sexuais, reprodutivos; e a acessibilidade aos postos de saúde foi um dos temas mais recorrentes. 

 

Ouvi relatos de mulheres da periferia que não tinham como fazer seus exames ginecológicos porque as unidades de saúde não tinham profissionais preparados, e muito menos aparelhagem adaptada para atendê-las. 

No caso, eram mulheres com deficiência física, a maioria cadeirantes, mas também poderiam ser pessoas surdas ou cegas, porque não há macas adaptadas, intérpretes de LIBRAS nas consultas etc. 

 

Como não sou cadeirante, surda, muda ou cega, e também não moro na periferia, eu podia dizer que isso estava bem longe da minha realidade até aquela manhã de dezembro de 2020, quando deitei na maca da Clinice, uma clínica conhecida no ABC, especializada em diagnósticos femininos. 

 

Felizmente, a maca não era muito alta, então o primeiro obstáculo foi superado e eu consegui deitar com alguma facilidade. Os primeiros minutos são sempre os mais fáceis; você coloca os braços pra trás, fecha os olhos e tenta relaxar. Como a médica e a assistente eram mulheres, não havia com que me preocupar. 

Ela fez o procedimento nas mamas e no abdome, pediu que eu me virasse de lado, o que não era difícil. Agora só faltava o exame transvaginal. 

 

“Agora você vai ter que descer o corpo e colocar seus pés aqui — apontou para a escadinha móvel que estava na ponta da maca. Tentei fazer como ela pediu, mas não consegui segurar os pés no degrauzinho estreito mantendo as pernas abertas, como era necessário e como a maioria das  mulheres conseguiam fazer sem problemas.

“Você não consegue manter os pés aqui”? — A médica me olhou visivelmente surpresa.

“Dra, tenho sequelas de PC e não consigo ficar em qualquer posição — respondi, bem mais constrangida do que ela e praticamente me desculpando.

Ela, literalmente, fica sem saber o que fazer e me diz que, sem isso, não conseguirá completar o exame. 

 

“Tem certeza que já fez esse exame outras vezes”? 

 

Sim, eu já tinha feito. Só que em locais que tinham uma mesa ginecológica adequada, com um apoio para a paciente ficar com as pernas suspensas. 

E, então, vem a pergunta que eu  estava esperando: você já teve relações sexuais? 

 Sinceramente, não entendo  o que isso tem a ver com o fato de uma clínica especializada em exames femininos não ter aparelhagem e mobiliário adequado para atender mulheres com deficiência, mas respondi à pergunta, sem muita escolha, como de costume.

 

Tentamos acertar a posição algumas vezes. Ela introduziu o aparelho onde tinha que introduzir, mas, ainda assim, reclamava que não havia “espaço suficiente para movê-lo” e que eu precisaria ficar com o quadril levantado para que o exame fosse completo. 

 

Tentamos um travesseiro, mas como já era esperado, ele não tinha altura suficiente. Como último recurso, faço um esforço danado para levantar o quadril, mas não consigo mantê-lo assim durante muito tempo. 

A dra me olha novamente com ar desolado e informa que “assim, não irá conseguir fazer mesmo, dona Fátima”, e que teria que complementar o exame por cima (pela ultra abdominal). Como se a culpa de toda essa situação absurda fosse de quem? Minha…

 

“Que ótimo, vamos acabar logo com isso”. Foi a única coisa que eu consegui pensar. 

 

Visto minhas roupas e saio da sala o mais rápido que posso. Estou suada e não é por causa do calor, mas por uma vergonha que, obviamente, não deveria ser minha.

 

Entender que a presença de uma pessoa com deficiência não é percebida ou sequer cogitada pelos sistemas de saúde particulares ou públicos é aterrorizante. Minha ficha tinha caído, finalmente.

 

Eu provavelmente não disse tudo o que a profissional que me atendeu merecia ouvir, nem deixei uma reclamação na caixinha da recepção. Também não sou a melhor pessoa para fazer escândalos em público, mas, felizmente, a escrita e a minha profissão me dão o poder que eu preciso para não me calar diante de uma situação como essa, que é vivenciada por milhares de mulheres todos os dias, isso quando não tem coisa ainda pior, não é?

 

Saí daquela clínica triste e sufocada, mas com uma certeza: a culpa não é da paciente com deficiência. E nunca será.

 

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