*Texto por Fátima El Kadri
Cuidado aí, menina!
Vai mais devagar…
Olha essa saliência
Não vai tropeçar!
Você se machucou?
Talvez essas frases não te digam muita coisa, mas pra mim, elas são quase um mantra. Eu passei a minha vida toda ouvindo também “cuidado pra não cair” , e não é força de expressão. Elas são muito necessárias na vida de uma criança que teve sequelas de paralisia cerebral.
Eu já tinha 6 anos quando comecei a andar, então dá pra imaginar que não foi nada fácil dar o primeiro passo. Caminhar era uma verdadeira operação de risco. Eu caía e levantava, como toda criança que está aprendendo a andar, mas as quedas eram bem mais frequentes, então eu tinha que tomar cuidado. Mas criança, uma hora ou outra, faz o que dá na telha e a minha marcha acelerada não me ajudava. Com a quantidade de obstáculos que a gente encontra por aí, era praticamente impossível passar um dia sem levar um tombo.
Só que eu cresci achando que era culpa minha, até porque, todo mundo me dizia isso. Então eu minimizava, dizendo que cair não era um problema. Mesmo que isso me causasse dor, um joelho ralado ou uma canela roxa. E graças ao meu anjo da guarda – que é poderoso- nunca passou disso.
A gente aprende desde cedo que o mundo não foi projetado para as pessoas com deficiência. Mas todo mundo adora ver uma historinha de superação e, com isso, as pessoas romantizam até os problemas mais graves.
Durante muito tempo eu também fui assim, só que a realidade de uma pessoa com deficiência física em um mundo sem acessibilidade não é nada romântica.
Se eu ando numa rua sem guia rebaixada, tenho que me apoiar pra descer e nem sempre tem um poste pra encostar, isso quando ele não está cheio de fios soltos. Andar numa calçada esburacada ou inclinada? Sem chance. Se o lugar tem escadas sem corrimão, ou eu peço ajuda de alguém ou não subo.
Eu me acostumei a viver assim, me privando de algumas coisas e acreditando que o problema era só meu. Normal para uma pessoa com deficiência física é viver sempre como se estivesse numa corrida de obstáculos… ultrapassando, pulando, desviando, mudando de caminho e de planos porque tal lugar não é acessível! Demorou muito pra cair a minha ficha e eu perceber que esse pensamento era errado.
E antes que me perguntem, eu não uso muleta, porque não me adaptei… nem andador, mas isso é outra história. Eu pretendo andar sem depender de aparelhos enquanto eu puder.
Mas o problema é que eu cansei de ter que tomar cuidado. Cansei de ter que pensar duas vezes antes de sair, de passar perrengue no restaurante ou no salão de festa que tem uma escada enorme e difícil de subir (sem nenhuma rampa, que é o básico do básico de acessibilidade). Cansei de me machucar física e psicologicamente por conta de erros que não são meus, e sim de uma sociedade que ainda não aprendeu a enxergar as pessoas com deficiência como cidadãos com direito à liberdade.
Senado aprova Lei que ameaça acessibilidade para pessoas com deficiência
Nossos deputados e senadores, por exemplo, acreditam que a acessibilidade urbana não é essencial. Imagina, condenar um prefeito por improbidade administrativa só porque ele não exigiu acessibilidade nos edifícios públicos? Podem construir sem acessibilidade, à vontade! Assim a gente economiza tempo e dinheiro! E as pessoas com deficiência física que continuem na sua eterna corrida com obstáculos impossíveis de ultrapassar. Ou que fiquem presos em casa de uma vez.
A tendência sempre é minimizar a necessidade de uma minoria. Se tá difícil de subir a escada, é problema seu, porque a maioria consegue. Se alguém caiu no meu estabelecimento, me desculpe, vamos levar isso para a gerência. Mas aí já é tarde demais, a humilhação já aconteceu, a vergonha já tomou conta, isso quando não acontece nada mais grave. De repente, se você foi naquele lugar pra se divertir, a única coisa que consegue pensar é em sumir dali o mais rápido possível.
A pergunta que fica é: até quando os políticos e as pessoas sem deficiência vão achar que acessibilidade é item opcional?? Quando é que vão entender que ela é boa pra TODO MUNDO e parar de dar desculpas para não fazer?
Lamento muito dizer, mas falar sobre a importância da acessibilidade pra quem não precisa dela é como pregar no deserto! As pessoas só olham pra você com cara de pena, alguns correm pra tentar socorrer quando uma merda acontece, dizem que vão tomar providências, mas é como falar de racismo pra quem não é negro. Sempre vai ter alguém babaca o suficiente pra dizer que é exagero, não é bem assim, mimimi ou “eu não tive a intenção de te machucar ”.
Pra você que é desse tipo, e principalmente para os políticos que aprovaram o PL 2505/2021, eu tenho um recadinho: não são só as pessoas com deficiência física que precisam de acessibilidade urbana. A população idosa, que só aumenta, também. Inclusive, provavelmente até você, que votou a favor, precise um dia, e aí você vai entender. Porque pra entender a importância da acessibilidade, só sentindo na pele a falta que ela faz.
*Fátima El Kadri é mulher com deficiência, jornalista e escreve para diversos portais entre eles a Câmara Paulista para Inclusão da pessoa com deficiência e o Vozes Femininas.