Mila Guedes entrevistada pela revista “Amici di Follereau”
Por Luciano Ardesi e Stefano Simoni
Mila Guedes, nossa coordenadora operacional do primeiro ano do projeto Vozes Femininas, levou ao Festival da Cooperação Internacional (Apúlia, Itália, outubro de 2019) a voz de tantas mulheres brasileiras que, como ela, enfrentam um duplo desafio, no contexto de uma sociedade desigual e machista: de ser pessoa com deficiência e de ser mulher. Ela fez isso com inédita intensidade e carisma, suscitando grande interesse.
Qual é a condição das mulheres com deficiência no Brasil?
No Brasil, pelo último Censo realizado em 2010, há 12 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência capaz de determinar uma forte redução de alguma funcionalidade, o que corresponde a aproximadamente 6,7% da população. Portanto, estamos falando de cerca 6 milhões de mulheres com uma (ou mais) deficiência que influencia fortemente o dia a dia. Como em todo o mundo, a pessoa com deficiência, por causa de uma história de marginalização, experimenta situações frequentes e variadas de desvantagens pessoais, grupais e sociais. Em 2008, o Governo Brasileiro ratificou a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD e, em 2015, promulgou a Lei Brasileira de Inclusão, baseada nos princípios da CDPD. Em ambas afirma-se que Estados e Municípios devem assegurar o acesso de pessoas com deficiência a todos os serviços que necessitarem. As mulheres com deficiência constituem um grupo invisível e marginalizado, além de duplamente discriminado pelo gênero e pela deficiência. Assim, podemos dizer que a maioria das mulheres com deficiência têm pouca ou nenhuma visibilidade e reconhecimento pela sociedade brasileira, especialmente nas famílias de baixa renda. Essa realidade faz com que essas mulheres não consigam a atenção e as respostas certas na busca de serviços de qualidade e cuidados para elas e/ou seus filhos e/ou outros membros da família. Quais são as formas mais importantes de discriminação contra mulheres com deficiência?
Uma primeira forma de discriminação tem a ver diretamente com a essência da pessoa com deficiência: o mesmo fato de ser pessoa com deficiência gera, em boa parte da população, a sensação de estar lidando com uma pessoa incapaz, limitada. Se a isso se adiciona a condição de ser mulher em um país como o Brasil, ainda fortemente machista, o quadro se complica sensivelmente. A mulher com deficiência trabalha menos do que o mesmo homem com deficiência, ganha salários mais baixos, e sofre mais facilmente violência tanto física quanto verbal, psicológica e institucional.
Existem episódios de violência contra mulheres com deficiência?
Há uma falta geral de evidências estatísticas sobre o fenômeno da violência contra a mulher, especificamente com deficiência. Uma pesquisa realizada pela Secretaria da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo indica que 63,4% das vítimas de violência, quando se trata de crianças e adolescentes com deficiência, são do sexo feminino e 52% advém de regiões pobres e periféricas da cidade de São Paulo. Vale observar que é nos cuidados básicos de saúde que as meninas e as mulheres com deficiência são mais propensas a sofrer violência e discriminação, porque muitas vezes os profissionais de saúde não estão tecnicamente preparados e têm preconceitos.
Quais são as causas dessa violência?
A mulher com deficiência é considerada duplamente vulnerável (por ser mulher e por ser com deficiência) e, associando isso ao preconceito de mulher com deficiência limitada fisicamente e/ou mentalmente, e ao machismo enraizado na sociedade, se desencadeiam desta forma fenômenos de violência que se situam acima da média (que já oferece números extremamente altos no Brasil) contra a mulher com deficiência.
“Dar voz significou, desde o início, também assumir, como BRASA, o compromisso para capacitar mulheres com deficiência e cuidadoras de pessoas com deficiência, para que atuem como agentes de mobilização social”.
Como nasceu o projeto Vozes Femininas e quais são seus objetivos?
Os temas das pessoas com deficiência foram bastante discutidos nos últimos anos em nosso país. A legislação é bastante satisfatória, alguma coisa, em políticas públicas, concretizou-se no sentido da melhoria das condições de vida dessas pessoas, muito se tem por fazer, mas a atual situação política e econômica não deixa margem para otimismo.
No caso das mulheres com deficiência, especificamente, e também das mulheres cuidadoras de pessoas com deficiência, (mães, na grande maioria das vezes), tanto por parte do governo, como também da sociedade civil, muito pouco foi discutido, menos ainda realizado. A dívida social é enorme.
Neste quadro se insere a ideia de Vozes Femininas, que surgiu com a intenção de dar voz a mulheres geralmente silenciadas na nossa sociedade, ou cuja voz não é ouvida. Dar voz significou, desde o início, também assumir, como BRASA, o compromisso para capacitar mulheres com deficiência e cuidadoras de pessoas com deficiência, para que atuem como agentes de mobilização social.
O percurso de capacitação deste primeiro ano foi realizado com um grupo de 150 mulheres por meio de encontros, seminários e vídeo aulas, num processo de reflexão e elaboração de crítica de suas próprias condições, e do contexto social em que estão imersas.
Ao longo desse primeiro período, Vozes Femininas se tornou um projeto referência ao dar voz às mulheres e estabelecer práticas e caminhos formativos inovadores, propiciando o diálogo entre mulheres com diferentes histórias, de diferentes localidades e diferentes tipos de deficiência.
Qual é o seu papel e quais atividades você realiza dentro do projeto?
Sou a Coordenadora Operacional do projeto e me ocupo especificamente da divulgação do mesmo nos encontros internacionais do Rehabilitation International e em encontros, seminários e oportunidades de outras instituições públicas, privadas (um exemplo a participação no Festival da Cooperação Internacional da AIFO, Itália, outubro de 2019) e de empresas que tenham interesse e responsabilidade social corporativa voltada para as pessoas com deficiência socialmente vulneráveis.
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